Oficina Pré-Textos em Sergipe

Quando: Maio de 2021
Onde: Remota (de Aracaju, Sergipe, Brasil)
Facilitador: Matheus Batalha e Rebeca Brito
Texto: Panopticismo III (Vintage, 1995) de Vigiar e Punir (1975) de Michel Foucault
 
Centro Bok 2019
⬇️
Uninassau 2020 
↙️               ⬇️               ↘️
Oficina em Sergipe 2020 Escolas Públicas Estaduais de Sergipe 2021/2022 Instituto Federal de Tecnologia 2022

Nos dias 8 e 15 de maio de 2021, o professor Matheus Batalha facilitou duas sessões de uma palestra virtual Pre-Texts Workshop de Aracaju, Sergipe, Brasil. O primeiro encontro teve 25 participantes e o segundo 20. A maioria estudantes do ensino superior.

A ideia era proporcionar aos alunos alguns elementos do Pre-Texts protocolo para ajudá-los em suas tarefas acadêmicas. A oficina foi o piloto de um projeto maior relacionado à violência na escola. Matheus contou com a colaboração dos professores Paulo Autran e Eder Malta, e das alunas Eloá e Thaís.

Testemunho

(...) Pre-Texts, o protocolo que havíamos utilizado naquela manhã, se constituía como uma “tecnologia humana”. (…) não há tecnologia que ainda supere a necessidade de fomentar o pensamento crítico entre os alunos. Humanamente, nós, professores, somos as pessoas que revelamos aos alunos que os livros não podem ser tratados como objetos sagrados. É preciso fazê-los perder o medo para que possam fazer da literatura matéria-prima para novas produções e para a atuação no mundo. Sem pensamento crítico, não há nação que se sustente.

Relato de Experiência

A torta de framboesa

(Mateus Batalha)

Assim que entrei, a atendente pegou um exemplar do Jornal da Cidade, dobrou e me entregou dizendo “bom dia”. Eu tinha ido até aquela loja de conveniência para, além de pegar um exemplar do jornal, comprar doces para o café da manhã. Eu sigo uma dieta bem balanceada. Durante a semana, acordo cedo e faço meu café da manhã com frutas e café forte. Aos sábados, fujo a esta rotina, e gosto de me permitir ler o jornal enquanto saboreio uns doces. É quase uma reminiscência da minha infância, quando, nos finais de semana, eu tinha um pouco mais de liberdade para aproveitar a vida, do que nas
dias escolares. Rapidamente peguei uma variedade de doces e um pote de salada de frutas para minha esposa. Ela só acordaria em algumas horas, quando eu estaria imerso em uma atividade acadêmica. “Pequenos gestos são sempre saudáveis”, pensei comigo mesmo. Nesse ponto, meu smartphone vibrava incessantemente com as mensagens recebidas. Uma pequena equipe de colegas me esperava para fechar os últimos detalhes do evento que aconteceria em meia hora. Percorri as mensagens, percebendo que precisava me apressar. “Até sábado que vem”, falei para a atendente assim que paguei a conta. Era hora de voar para casa.

Larguei a sacola de compras na geladeira e fui direto para minha biblioteca. As tarefas urgentes eram simples: verificar se determinado link estava funcionando, deixar o arquivo com minhas anotações aberto e iniciar a sala de reunião virtual. Durante semanas, havíamos preparado uma oficina pedagógica para alunos do ensino superior com base em um protocolo desenvolvido nos EUA. A ideia foi dotar os alunos de alguns elementos deste protocolo para os ajudar nas suas tarefas académicas. Para tanto, selecionamos vinte e cinco alunos interessados ​​em construir projetos na área da Educação, a grande maioria sergipana, e alguns poucos da
instituições como USP, UFPEL, UFRJ. Ao dar bom dia, percebi, pelo sotaque de suas vozes, como aquele grupo era diverso. Agradeci a presença de todos e disse que nosso maior objetivo naquela manhã era estimular a prática da leitura de textos complexos de forma lúdica e artística. Com isso, buscamos ampliar nosso capital cultural e ajudar na autoestima dos alunos. Enquanto falava, notei que era importante fazê-los perder o medo. Eu havia preparado um quebra-gelo para isso e logo perguntei
todos se apresentem rapidamente e designem um adjetivo para si mesmos com a primeira letra de seu nome. “Por exemplo, eu sou o “Matheus Maravilhoso”! (Matheus, o maravilhoso) Por que não?” Eu completei em um tom lúdico. Um a um, rindo, todos os alunos brincavam simbolicamente com seus adjetivos e, quase como num passe de mágica, aquele grupo de pessoas, que até então não se conheciam, se uniu. Para acabar com qualquer outra energia negativa, fizemos uma rápida prática de ioga conduzida por um dos
professores que compõem nossa equipe.

Sem muita cerimônia, informei aos participantes que iríamos trabalhar naquela manhã com um pequeno trecho do livro Vigiar e Punir, do filósofo francês Michel Foucault. Para tanto, pedi a todos que criassem uma capa para este livro. Essa atividade, inspirada nas cartoneras argentinas, que após a crise econômica de 2001, passaram a publicar livros de baixo custo, com capas criativas de papelão, serviria para criar um sentimento de propriedade sobre o material. Pelas janelinhas da sala virtual, vi que os participantes se divertiam como crianças criando seu livro
capas com qualquer material que tivessem à mão. Como se não quisesse nada, pedi a um aluno que se oferecesse para ler o trecho que havíamos separado do texto. “Estas são as medidas que eram necessárias, segundo um regulamento de finais do século XVII, quando se declarava a peste numa cidade” lia-se calmamente o aluno voluntário. À medida que ele avançava na leitura e comunicava a todos as medidas sanitárias adotadas naquela crise, percebi que os rostos dos alunos mudavam para um
estado de atenção e seriedade. Após a primeira leitura, pedi que examinassem com calma as três páginas do texto e propus que, na sequência, fizéssemos uma nova leitura coletiva. Desta vez, todos devem pensar em uma dúvida, alguma curiosidade ou algo que gostariam de saber mais. “O que é panoptismo?”, questionou uma aluna, que acrescentou que, naquele momento, preferiu colocar a questão ao grupo do que simplesmente lançar as suas dúvidas ao Google. A partir daí, as questões surgiram de forma cada vez mais complexa com enorme facilidade, destacando múltiplos pontos de vista sobre o trecho que havíamos lido. Após a rodada de perguntas, fiz aos participantes uma pergunta central: “o que fizemos?” Eu perguntei em um tom leve, mas professoral. Como um mistério em que alguém busca respostas, uma a uma, os alunos foram elencando elementos cognitivos e emocionais para as atividades daquela manhã, relacionando a história e a complexidade da leitura com o momento tenso que vivemos no Brasil atualmente.

“Do desconhecido para a intimidade”, pensei enquanto admirava as perguntas e respostas que os participantes apresentavam voluntariamente ao grupo. Ao final de nossa oficina, pedi aos participantes que escolhessem outra obra literária, que poderia ser um poema, um conto etc., algo que tivesse alguma relação com o texto que havíamos trabalhado naquela manhã, e publicassem seus trechos anonimamente. em um link online que eu compartilhei. A ideia era criar um novo sentimento de admiração coletiva por meio de uma publicação comunitária a ser trabalhada em nosso próximo encontro. Eu vi o sorriso no rosto dos alunos
quando me despedi na sala virtual. Minutos depois, matando minha fome com café e doces, lembrei que Pre-Texts, o protocolo que havíamos utilizado naquela manhã, se constituía como uma “tecnologia humana”. É muito fácil se encantar por aparelhos tecnológicos que estão em constante evolução. Na Educação, as promessas são muitas, desde computadores de baixo custo, chamados de raspberry pi, trocadilho com framboesa torta, até transformações digitais que, por dinheiro ou necessidade, se aprofundaram enormemente por conta da pandemia. Porém, se há algo que aprendi nestes tempos de pandemia é que não há tecnologia que ainda supere a necessidade de fomentar o pensamento crítico dos alunos. Humanamente, nós, professores, somos as pessoas que revelamos aos alunos que os livros não podem ser tratados como objetos sagrados. É preciso fazê-los perder o medo para que possam fazer da literatura matéria-prima para novas produções e para a atuação no mundo. Sem pensamento crítico, não há nação que se sustente.

Educação ao redor do mundo 📮 (mailchi.mp)